Hugo
de São Victor, foi um famoso mestre medieval, deixou-nos esplêndidos
comentários e sermões.Um de seus muitos sermões ele fala sobre o
Pai Nosso e os pecados capitais:
Os
sete pedidos do Pai Nosso;
Os
sete vícios capitais;
Os
sete dons do Espírito Santo;
As
sete virtudes e;,
As
sete bem-aventuranças.
Poeticamente
– esse excelente autor medieval sempre fala com poesia –, ele nos
explica que os sete vícios capitais são comparáveis aos sete rios
de Babilônia, que espalham todo o mal, gota a gota, por toda a
terra, pois deles defluem todos os pecados. Por isso, lembra ele, a
Escritura nos diz :
'Junto
aos rios de Babilônia nós nos assentamos e choramos lembrando-nos
de ti, ó Sion'(Sl CXXXVI,1).
Hugo
de São Victor coloca os vícios capitais em uma certa ordem lógica,
a fim de relacioná-los com os sete pedidos do Pai Nosso. Assim ele
ordena os vícios capitais: soberba, inveja, ira, preguiça ou
tristeza, avareza, gula e luxúria.
O
primeiro vício capital, causa primeira de todos os nossos males
espirituais, é a soberba. Por esse vício atribuímos a nós mesmos,
ao nosso próprio ser, a causa do bem existente em nós. Pela soberba
deixamos de reconhecer a Deus como fonte de todo o bem. Ao fazer
isso, o homem deixa de amar o Bem em si mesmo, para amar o bem
enquanto existe nele próprio, porque existe nele. Dessa forma, o
homem rompe a sua união com a fonte do bem. Condenando a maldade do
orgulho, exclama o mestre:
Ó
peste de orgulho, que fazes tu aí? Por que persuadir o riacho a se
separar de sua fonte? Por que persuadir o raio de luz a romper sua
ligação com o Sol? Por que, senão para que o riacho, cessando de
ser alimentado pela fonte, seque, e que o raio de luz, cortada sua
união com o Sol, se converta em treva? Por que, senão para que
assim ambos, no mesmo instante em que cessam de receber o que ainda
não têm, percam imediatamente aquilo mesmo que já têm?' E
assim é que o homem soberbo, arvorando-se como causa do bem que Deus
lhe deu graciosamente, atribui-se uma honra que só cabe a seu
Criador. O soberbo rouba a glória de Deus, e fazendo isso
desencadeia sobre si todos os males. A soberba, portanto, nos despoja
do próprio Deus. Por
isso, a primeira petição do Pai Nosso suplica que Deus nos conceda
a graça de reconhecê-Lo sempre como a fonte de todo o bem: 'Pai
nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome'. Isto é,
que Deus seja glorificado como causa de todo bem existente em nós e
em todas as suas criaturas.O
riacho deve ser grato à fonte que o alimenta. O raio de luz deve
reconhecer o Sol como causa de seu brilho. Só assim continuarão a
correr e a iluminar.
Na
primeira petição da oração que nos foi ensinada pela própria
Sabedoria encarnada, rogamos que Deus nos conceda a compreensão e o
reconhecimento de Sua excelência e transcendência, e que assim, por
meio do dom do temor de Deus Altíssimo, sejamos humildes e curemos a
enfermidade de nosso orgulho.
O
orgulho é em nós uma doença grave que gera sempre outros males e
enfermidades. Ele nos faz amar o bem que Deus nos concedeu como se
fosse nosso, produzido, em nós, por nós mesmos. É o orgulho que
faz o riacho julgar-se fonte, e o raio de luz julgar-se o Sol. Quando
o homem se deixa dominar pela soberba, ele passa a amar o bem que
recebeu não porque é bem, mas só porque é seu. E, quando vê o
mesmo bem existindo em outro homem, não o ama enquanto bem, mas o
detesta porque está em outro. Ele quereria que aquele bem não
existisse no outro, porque julga que aquele bem só deveria existir
nele mesmo, falsa fonte do bem. Vendo o bem, que julgava ser seu, em
outro homem, o orgulhoso fica então triste e amargo.
Tal
tristeza amarga se chama inveja, e é a segunda doença que acomete o
homem, o segundo vício capital.
A
soberba gera sempre a inveja do bem que Deus concedeu a outrem. Desse
modo, ela nos separa e despoja de nossos irmãos, assim como a
soberba nos despojara e separara de Deus, nosso Criador. E isso é
bem justo, porque assim como o soberbo se regalara desregradamente
com a doçura de possuir o bem, agora ele se amargura ao ver o bem no
outro. Quanto mais o homem soberbo se vangloria de seu bem, mais
ele se atormenta com o bem nos outros. A inveja rói o soberbo e
amarga a sua vida. Se o homem soberbo amasse corretamente o bem que
lhe foi dado em grau limitado, ele amaria sem limite a fonte de todo
o bem, que o possui infinitamente. Amando então o Bem em si mesmo,
ele amaria o bem que visse em qualquer outro homem e se alegraria com
a virtude alheia, porque amaria Deus no outro.Foi para combater este
segundo vício capital que o Divino mestre nos ensinou a pedir, em
segundo lugar no Pai Nosso, 'Venha a nós o vosso reino'. Porque o
Reino de Deus é a salvação dos homens; porque Deus reina num homem
quando este lhe está unido pela fé e pela caridade, a fim de que,
na eternidade, esteja para sempre unido a Deus pela visão beatífica.
Quando
pedimos a Deus que Ele reine em todas as almas, Ele nos concede o dom
da piedade, que nos torna benignos, desejando também para os outros
o bem que desejamos para nós mesmos. A
inveja, por sua vez, gera em nós uma nova doença. Tal como a
soberba nos persuadira de que somos a causa do bem que temos, e a
inveja nos causa a tristeza de ver o bem nos outros, em seguida a
inveja nos leva a considerar que Deus é injusto ao dar o bem - que
pretendíamos fosse apenas nosso - a nosso irmão.Consideramos então
que o Criador reparte mal seus bens, e que nos fez injustiça. Por
isso, caímos em cólera contra Ele. A ira é então a filha da
inveja. Ela nos leva a revoltar-nos contra Deus, enquanto justo
distribuidor dos bens. A
soberba despoja o homem de Deus. A inveja o separa e despoja dos
demais homens. A cólera o despoja de si mesmo, fazendo-o perder o
controle e o domínio do próprio ser. Porque o colérico tem raiva
de Deus, que acusa de repartir injustamente seus bens, e se enraivece
contra si mesmo, porque vê que não possui todo o bem e percebe seus
defeitos e limitações.A cólera leva então o homem a ter raiva de
Deus, dos outros e, enfim, de si mesmo. Com raiva de si mesmo, o
homem, doente pelo vício da cólera, começa a detestar até o bem
que tem em si.
Por
todas estas razões é que Nosso Senhor colocou como terceira petição
do Pai Nosso 'Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no
céu'.
É
a conformação com a vontade de Deus que nos permite vencer o vício
da cólera. Quando pedimos sinceramente a Deus, no Pai Nosso, que nos
conformemos com a sua Santíssima Vontade, Ele nos concede então o
dom da Ciência, através do qual somos instruídos e compreendemos
que os males que nos advém são decorrências da justiça e de um
castigo misericordioso de nossos pecados. Compreendemos que devemos
aceitá-los com paciência e não com revolta. E compreendemos ainda
que os bens alheios são fruto da generosa misericórdia e justiça
de Deus, a qual visa sempre a sua maior glória e também o nosso
maior bem.
O
colérico, pelo contrário, não tendo o dom da Ciência, não
reconhece que mereceu o castigo que sofre, e se revolta. Pelo
contrário, quem tem o dom da Ciência tudo suporta e é consolado.
Caindo
nesta terceira enfermidade, a da cólera, o homem já não possui
então, em si, nenhum motivo de alegria nem de consolação. Como não
quis tirar do bem alheio a alegria, o invejoso caiu na tristeza e no
auto-suplício da cólera, que o flagela depois que foi despojado de
Deus, do próximo e de si mesmo.Não encontrando mais em si nem
alegria nem consolação, o homem colérico cai na tristeza. Esse era
o nome que os medievais davam à preguiça, porque o vício capital
da preguiça leva a ter tristeza com o bem que recebeu de Deus, visto
que esses bens nos trazem obrigações.
Os
vícios capitais anteriores, como vimos, fazem o homem perder todo o
amor ao bem que Deus lhe deu. Agora, dominado pela cólera, ele já
não tem alegria nem no próprio bem, e este bem ainda lhe exige
cumprimento de deveres, porque a quem muito foi dado, muito será
pedido. Desconsolado e triste, o homem soberbo, invejoso e colérico
lamenta as obrigações que trazem os bens que Deus lhe havia dado, e
tem pouca vontade de trabalhar na vinha de Cristo. É da cólera que
nasce a preguiça ou tristeza. O colérico preferiria que Deus não
lhe desse bem algum, para não ter mais obrigações. A tristeza ou
preguiça ata o homem na coluna da inércia e o fustiga de tristeza.
Ora,
o que nos dá força para trabalhar com alegria e incansavelmente na
vinha do Senhor é o pão de cada dia. Por isso, para combater a
falta de generosidade no serviço de Deus, Jesus nos faz pedir no Pai
Nosso 'O pão nosso de cada dia nos dai hoje'. Isto é, que Deus nos
conceda a graça e a força necessários para cumprir nosso deveres
de cada dia. Que Deus nos dê suas graças e força para cumprirmos
os deveres que elas nos acarretam. E esta força de atuar é que traz
ao homem a alegria do dever cumprido. Com 'o pão nosso de cada dia',
o que pedimos, então, é o dom da Fortaleza, o qual nos dá força e
paciência para enfrentar as dificuldades, trabalhos e cruzes de
nossa vida de cada dia. É o dom da Fortaleza que produz em nossa
alma a fome e a sede de justiça de que necessitamos para ir ao céu.
Na
quarta petição pedimos, portanto, a fome de justiça e o pão que a
sacia.
E
que rio de maldade vai ser gerado pela preguiça ou tristeza? Da
tristeza nascerá a vontade de buscar consolação nos bens
exteriores, porque aquele que não encontra bem ou alegria dentro de
si procurará consolação fora de si. Da preguiça virá portanto a
avareza, a cobiça desmesurada de bens materiais. Quem não tem fome
e sede de justiça terá fome e sede de ouro, e fará da fortuna a
sua justiça. E à ausência de consolação e de alegria interiores
se somará a inquietude pela aquisição e pela conservação dos
bens materiais, que só trazem falta de paz, inquietação, apreensão
de males e perturbação de espírito.
A
sede de bens materiais somente cresce com a posse deles, e jamais o
homem estará saciado pela riqueza. A riqueza é uma água que faz
crescer sempre mais a sede por ela. Para combater essa miséria e
essa quinta doença - tão baixa - da alma, Cristo nos mandou que
pedíssemos, em quinto lugar: 'Perdoai as nossas dívidas, assim como
nós perdoamos os nossos devedores' . Pois é bem justo que quem não
é avarento no que lhe é devido não seja também inquietado pelo
que deve. O misericordioso com os seus devedores alcançará
misericórdia para si. E quando pedimos a Deus o perdão de nossas
dívidas, no mesmo grau em que estamos dispostos a perdoar o que se
nos deve, o que pedimos e recebemos é o dom do Conselho. Por esse
dom do Espírito Santo sabemos e temos força para exercer de bom
coração a misericórdia para com quem nos ofende, e do modo mais
conveniente, e na hora oportuna, para lhes fazer bem em troca do mal
que nos deram.
Do
rio vicioso da avareza, caso ele não seja vencido em nós pela ação
da graça, nascerá um rio mais lamacento ainda, que é o rio da
gula. E é lógico que buscando os bens inferiores, o homem seduzido
pelas riquezas - nelas não encontrando verdadeira consolação, mas
só ainda maior inquietação - procure então num bem inferior, que
está nele mesmo, aquilo que os bens inferiores externos não lhe
puderam dar. Ele
busca então o prazer dos sentidos, e em primeiro lugar o prazer do
comer, visto que todo homem, precisando alimentar-se, necessariamente
tem que ser tentado pela gula. Esse vício seduz o homem e o
reduz a um nível inferior ao dos animais. Aquele homem, pois, que
quis se igualar a Deus colocando-se orgulhosamente como causa do
próprio bem, cai agora abaixo dos animais, que só comem o que lhes
é necessário. Para
combater este sexto e tão baixo mal, na oração , Cristo nos ensina
a pedir : 'Não nos deixeis cair em tentação'. Note-se
que não se pede para não ter a tentação da gula. Visto que é
necessário que o homem coma, todo homem estará exposto à tentação
do comer desregradamente. A gula explora o apetite natural de
subsistência, levando-nos ao excesso. A pretexto de necessidade, a
gula nos induz a comer irracionalmente.
Por
isso, para combatê-la, pedimos a Deus, na sexta petição do Pai
Nosso, que nos conceda o dom da Inteligência. Porque é o apetite da
palavra de Deus que contém o homem na justa medida do apetite do pão
material, pois 'nem só de pão vive o homem'. Mas só entende isso
quem tem o espírito de Inteligência, que faz compreender a
superioridade dos bens espirituais sobre os materiais, fazendo o
homem vencer a gula pelo jejum e abstinência, e a avareza
acumuladora pela confiança na Providência. É o espírito de
Inteligência que clarifica a visão interior do homem pelo
conhecimento da palavra de Deus, que age como um colírio no olho da
sabedoria. Seduzido pelo rio lamacento da gula, o homem pecador
é arrastado ao pântano final, onde fica atolado, sujo e preso: a
luxúria escravizadora.
Quando
o homem se entrega ao prazer da gula, a sua alma se torna débil e já
não consegue dominar o ardor das paixões carnais. Caindo na
luxúria, ele fica escravizado, porque nenhuma paixão tem maior
poder de domínio sobre o homem do que a impureza. Escravo dos amores
impuros, o homem jaz na servidão do demônio, da qual dificilmente
se liberta, a não ser pela oração e penitência. Este
é o sétimo e fétido rio dos vícios de Babilônia, do qual, no Pai
Nosso, se pede apropriadamente no Pai Nosso a libertação:
'Livrai-nos do mal' É bem natural que o homem escravizado suspire e
implore por sua liberdade. E a sétima petição do Pai Nosso nos
implora de Deus Altíssimo o dom da Sabedoria, que torna realmente o
homem livre . Ora, a palavra sabedoria tem a mesma raiz de sabor.
Movida pela graça e sentindo o gosto da Sabedoria, a alma se liberta
da escravidão dos prazeres materiais e pode, enfim, alçar voo para
contemplar a Deus.Portanto, é a doçura interior e espiritual que dá
ao homem a força de vencer a volúpia mentirosa dos sentidos.
Só
então, na posse da Sabedoria e libertada dos vícios, terá a alma a
paz de Cristo, que não é a deste mundo.