Não
se tinha noção da união entre espermatozoide e óvulo, tanto que
se acreditava que se o homem conseguisse expelir o esperma, ele já
era fecundo. Por isso, se após o ato sexual, a mulher não
engravidasse, sempre lhe seria imputada a culpa da esterilidade e
nunca para o homem. Por isso, que nas antigas genealogias são os
homens que aparecem na lista dos antepassados e não as mulheres. O
maior exemplo de genealogia da Sagrada Escritura, encontra-se no
Primeiro livro de Crônica, no qual quase todos os primeiros nove
capítulos são na verdade uma grande genealogia. Se para muitos,
ouvir ou ler a leitura da genealogia de Jesus é entediante, pois
afinal, “só são nomes, não tem narrativa”, imagine ouvir nove
capítulos de listas de nomes?
Mas
as genealogias são realmente apenas listas de nomes?
Existiria
algum interesse por trás deste aparente entediante gênero
literário?
Engana-se
quem pensa que as genealogias são apenas listas de nomes de
ancestrais, pois elas são na verdade pura teologia. Primeiro uma
teologia da história, na qual o povo conecta-se aos seus
antepassados, criando a consciência de que eles fazem parte das
mesmas promessas e bênçãos dos seus patriarcas; também era uma
forma de justificar funções, uma vez que as famílias sacerdotais
precisavam demonstrar que seus filhos eram descendentes de Arão,
irmão de Moisés e primeiro sumo sacerdote; era necessário saber se
tal pessoa pertencia a tribo de Judá ou Benjamin, para que pudesse
casar-se preferencialmente com alguém de sua própria tribo; ou,
quem sebe, um candidato a rei, precisava demonstrar que ele era
descendente do rei Davi, apelava-se então para a lista de seus
antepassados. Assim, a genealogia ajudava no dia-a-dia das pessoas em
todos os setores da vida. Mas a teologia das genealogias poderiam
guardar muitas surpresas! Vejamos as genealogias de Mateus e de
Lucas. Podemos dizer, ao compará-las, que a de Mateus é
"ascendente", ou seja, ela parte do mais antigo ancestral
até os mais contemporâneos, no caso, de Abraão até Jesus; a
genealogia de Lucas faz justamente o contrário, é "descendente",
parte do mais contemporâneo até o mais ancestral, de Jesus até
Adão.
Quando
pensamos em ancestralidade, podemos dizer que o Evangelho de Lucas é
muito mais abrangente ou universal, pois não pensa em Abraão como
pai, mas em Adão, assim a atividade de Jesus vai além do povo
judeu, mas abrange todo gênero humano. Podemos perceber que havia um
interesse teológico nesta abertura, pois se sabe que o Evangelho de
Mateus fora escrito para uma comunidade formada por grande maioria de
judeus, enquanto o Evangelho de Lucas voltou-se para os estrangeiros
(gregos, romanos e tantos outros) que abraçavam a mensagem de Jesus.
Lucas precisava ser mais universalista e fazer que aqueles
estrangeiros entendessem que faziam também parte do projeto de
salvação de Deus, por meio de Jesus.
Um
elemento interessante da genealogia de Mateus é seu caráter gemátrico, ou seja, sua forma numérica. A genealogia de Mateus
está organizada em três grupos de 14 nomes: 1) de Abraão até
Davi; 2) de Davi até o exílio da Babilônia; e 3) do Exílio da
Babilônia até Jesus. Esta organização demonstra que a informação
teológica é mais importante que a histórica, uma vez que faltam
nomes importantes nesta lista (é só prestar atenção nas grandes
genealogias do Primeiro livro de Crônicas). O autor queria chamar
atenção ao número “14”, primeiro por que ele é o dobro do
número “7”, entendido como o número da perfeição, segundo a
tradição judaica. Temos assim uma primeira informação teológica
(7+7=14), ou seja, cada geração é parte completa e perfeita do
projeto de Deus para se chegar até o messias. Mas há ainda outro
elemento relevante: se para Mateus era importante evidenciar o
judaísmo, era necessário ligar mais profundamente Jesus com a
figura do rei-messias, Davi. Para isso, ele se utilizou da repetição
do número 14 (três vezes, para chamar a atenção dos leitores e
para lembrar que é um número da esfera das coisas divinas). O
número 14 é também uma fórmula cifrada de um nome, pois em
hebraico, cada letra do alfabeto tem o seu valor numérico. Assim,
para formar 14 com letras hebraicas são necessárias três
consoantes: dálet (ד),
o váv (ו)
e novamente o dálet (ד).
O valor numérico do dálet é 4 e o do váv é
6, deste modo, podemos fazer a soma: 4+6+4=14 (dálet + váv + dálet =
14). Estas três letras formam também um nome em hebraico, “דוד”
(David = Davi).
Assim, podemos entender o modo genial que Mateus pensou para mostrar
para a sua comunidade, formada de majoritariamente de judeus, que
Jesus era descendente de Davi, que ele estava incluído no projeto
divino ligado pela ancestralidade a o rei messias Davi. Parece
surpreendente, mas não acaba por aí.
Quando
Mateus apresenta a lista de ancestrais de Jesus, ele propositalmente
incluiu mulheres, algo que não era comum neste gênero literário.
Estas mulheres tiveram um papel importante na história do povo
judeu, mas todas elas são envolvidas em problemas de cunho moral.
São elas: Tamar, Raabe, a mulher de Urias (Bersabeia) e Maria.
Tamar
era uma mulher do clã de Judá. Ela não tinha filhos quando ficara
viúva, por isso pediu para Judá, chefe do clã e seu sogro, que lhe
desse o direito de ter filhos com o parente mais próximo, ou seja, o
irmão do falecido, como ditavam as regras do Oriente. Judá lhe
concedeu o direito, mas o seu novo marido também morreria por um
castigo divino (segundo o texto, ele se chamava Onã e não queria
ter filhos, pois teria que dividir sua herança; por isso ele
“lançava seu sêmen por terra”, ou seja, não fecundava sua
esposa). Com a morte de Onã, Judá não deixou Tamar se casar
novamente. Ela, inconformada, decidiu partir para uma atitude
extrema. Se vestiu com roupas de prostituta (elas ficavam em lugares
específicos e cobriam o rosto para não serem identificadas). E “por
acaso”, quem procurou por seus serviços, sem saber de quem se
tratava, foi o próprio Judá, seu sogro. Ele acabou deitando com
Tamar e a engravidando. Quando, mais tarde, ela apareceu grávida,
conseguiu provar que o pai era Judá, para espanto de todos! E ele
mesmo proclamou, diante das circunstâncias, que Tamar era mais justa
que ele.
Raabe
era de fato uma prostituta que vivia com seus filhos em Canaã no
tempo em que o povo hebreu estava se preparando para entrar na terra,
depois de 40 anos de caminhada no deserto. Canaã estava habitada e
era necessário que espiões hebreus sondassem a terra para
descobrir se era possível vencer uma batalha naquele lugar. Estes
espiões acabaram se refugiando e se escondendo na casa de Raabe, e
esta, após descobrir o plano deles, pede em troca da proteção, que
ela e seus filhos sejam poupados. Assim foi feito!
Rute
é uma moabita que acabara entrando repentinamente na vida de Noemi,
sua sogra. Noemi veio da cidade de Belém num momento de crise, sem
chuva e sem alimentos, com seus filhos e marido. Para sua desgraça,
seu esposo morre e seus filhos se casam com moabitas, uma delas é
Rute. Mas o destino acabou levando embora também sem filhos, que
morrem ainda jovens. Fica Noemi só com suas duas noras. Ao saber que
as coisas melhoraram em Belém, ela decide voltar. Rute parte com
ela, enquanto a outra nora decide voltar para a casa dos seus pais.
As duas mulheres sozinhas e pobres retornam e Rute começa a
trabalhar para sustentar a casa. Era tempo de colheita e ela recebeu
permissão do dono de um campo de cevada, que era parente de Noemi,
para pegar os grãos caídos no chão. Noemi sabe que um parente
poderia se casar com Rute. Assim, ela a instrui para“seduzir”
Booz, dono do campo, garantido o direito da moça ter um filho e uma
descendência. Eles acabam se casado e Rute se torna a bisavó do rei
Davi.
Bersabeia
era uma mulher bonita, casada com um homem chamado Urias, que
pertencia ao exército do rei Davi. Em um momento de guerra, no qual
Urias não estava, Davi “leva” Bersabeia para dormir com ele, e
acaba por engravidá-la. Para que Urias não descobrisse o adultério,
Davi manda buscar Urias da guerra, numa espécie de licença especial
de alguns dias. O rei desejava que Urias dormisse com sua esposa e
depois assumisse o filho como se fosse dele. Mas Urias teve uma
reação muito diferente, ele fica indignado de ser tirado da guerra
e de abandonar seus companheiros, decide não ir para casa e ficar
nos degraus de entrada da casa de Davi. Ele não se encontra com sua
esposa. Desesperado, Davi só vê um caminho: a morte de Urias. Manda
que seus soldados o levem de volta para a guerra, e o coloquem no
lugar mais perigoso. Urias não poderia mais voltar! Quando Urias
morre, Davi toma Bersabeia como esposa. Como castigo, o filho do
adultério de Bersabeia e Davi morre. Logo a nova esposa de Davi
engravida e dá a luz a um menino que levará o nome de “Salomão”.
Ele não é o herdeiro do trono, mas Bersabeia fará de tudo para que
o seu filho seja o sucessor legítimo do trono. E ela consegue!
Maria
está junto com todas essas mulheres envolvidas por "escândalos"
morais significativos, pois ela também acaba se envolvendo em um:
ela fica grávida antes do seu casamento. Esse acontecimento faz com
que Maria se ligue às mulheres da genealogia de Jesus, mas não só
isto. Todas essas mulheres lutaram incansavelmente pelo direito de
possuir uma descendência, de deixar a sua história para a
posteridade. Elas, agindo moralmente ou não, buscaram dentro de sua
própria realidade o direito de serem mães e de garantirem a vida de
seus descendentes. Com Maria não foi diferente, ela se casou com
José, que aceitou adotar seu filho, e, ambos, lutaram contra as
forças maléficas que queriam acabar com a vida daquela criança.
A
genealogia (de Mateus ou a de Lucas), como podemos perceber agora,
não é só uma lista de nomes, mas um reflexão com grande riqueza
de temas que se entrelaçam com a teologia, história e a cultura
bíblica. A genealogia de Jesus nos apresenta sinais, números, além
de tudo, mulheres que burlaram os conceitos morais de sua cultura
para seguir a voz do seu coração e com isso, mesmo nos altos e
baixos da história, colaboraram para que a descendência de Abraão
chegasse até Jesus, o messias. Este messias se inseriu nesta
história tão humana e tão real, não num mundo idílico de heróis
e gente perfeita. Foi na verdadeira história humana que Deus desejou
entrar e se fazer presente, dentro da fragilidade humana. A mensagem
das genealogias parece que pode ser resumida assim: mesmo quando o
ser humano erra, Deus acaba dando um jeito de acertar as coisas! Pode
acreditar, estamos no caminho certo, não tenha medo! Deus os Abençoe !
Eu
li esse texto amei pois está correto . Escrito pelo Professor
Antonio Marcos Blog do Professor António Marcos.