16 abril 2015

Pastores condenam à morte crianças acusadas de bruxas

                                 
Na Nigéria, lindas e inocentes crianças, às vezes de apenas dois anos de idade, são torturadas, abandonadas e mortas por seus próprios pais, parentes e membros da comunidade. Numa terra tomada pela pobreza e analfabetismo, pastores autointitulados profetas vêm, no decorrer dos anos, rotulando milhares de crianças como bruxas. O diretor da organização brasileira Way to the Nations, Leonardo Rocha dos Santos, dirige um orfanato na Nigéria que proporciona um lugar seguro para as crianças resgatadas. Nessa entrevista ele nos dá uma ilustração chocante dessa obscura realidade da Nigéria.

Tihomir: Desde 2009, quando a mídia britânica noticiou extensamente a tragédia na Nigéria, pouco foi noticiado ou mostrado pela imprensa até recentemente. O problema diminuiu com o decorrer dos anos?

Leonardo: Há quatro anos, desde que me envolvi com o ministério de resgate das crianças falsamente rotuladas como bruxas, o número de crianças torturadas e mortas não diminuiu. Já vi muitos casos, alguns de extrema gravidade. Nosso trabalho só está presente em um dos estados nigerianos, o estado com a população cristã. Essas crianças rotuladas falsamente também são torturadas e mortas nos Camarões e em Angola. A UNICEF também relata a situação como crítica, no Congo. Algumas organizações internacionais relatam milhares de casos de crianças estigmatizadas. Eu encontrei, pessoalmente, cerca de 400 casos de tortura, abandono e morte de crianças. Há apenas dois meses, numa certa noite recebemos uma chamada telefônica angustiada, de alguém que tinha ouvido falar de nossa organização, e conseguimos resgatar duas crianças que seriam assassinadas ao mesmo tempo.

Tihomir: Qual é o papel da Helen Ukpabio, fundadora da controversa “Liberty Foundation” e seu ministério de exorcismo, em instigar a violência contra as crianças na Nigéria?

Leonardo: O problema cresceu muito desde 1999, quando Helen Ukpabio produziu um filme de terror: “End of The Wicked” (Fim da Bruxaria). O filme, assim como o “ministério” dela, de exorcismo, têm servido como inspiração para a tortura e o assassinato de muitas crianças na Nigéria e países vizinhos. Neste momento ela está visitando o Reino Unido. Se eu fosse falar publicamente em igrejas no Reino Unido ou nos Estados Unidos sobre como fabricar bombas, eu seria preso imediatamente, porque bombas matam pessoas. No entanto, essa senhora, cujo trabalho está tornando pais em assassinos de suas próprias crianças, tem permissão para visitar o Reino Unido, onde ela realiza exorcismo de crianças nesse momento.

Tihomir: Dê-nos uma visão geral de como pais se tornam assassinos de suas próprias crianças.

Leonardo: O problema surge naquelas regiões onde o cristianismo se misturou a religiões pagãs. Elas são solo fértil para superstições. A maioria dos casos em que nós resgatamos crianças começa em ambientes de igrejas com forte ministério de expulsão de espíritos, evangelho da prosperidade e dominação – ambientes onde essas formas de religiosidade passaram a ser o foco principal. Pastores e profetas autointitulados, sedentos por dinheiro, ensinam os fiéis de suas igrejas que muitos dos problemas que enfrentam, tais como pobreza, desemprego, doenças e colheitas sem sucesso, são resultado da presença de uma criança “bruxa” em suas famílias. Esses pastores prometem expulsar das crianças tais espíritos de bruxaria; em troca, eles exigem dos pais enormes quantidades de dinheiro, na maioria das vezes impossíveis de serem pagas. Em seguida, os pais supersticiosos passam a tentar descobrir qual, entre seus seis, sete, às vezes oito filhos, é a criança bruxa. A tendência é escolher a criança que apresenta algo diferente: algum tipo de limitação física, uma doença, ou o mais inteligente e sapeca, ou o mais genioso – conhecemos um menino que tinha epilepsia; seus pais estavam convencidos de que ele estava possuído por um espírito de bruxaria. As crianças são, então, forçadas, por meio de tortura, a confessar que são bruxas. Elas passam a ser severamente espancadas, expulsas de suas casas, jogadas nas ruas escuras ou em florestas, mutiladas e até mortas. Tudo isso por conta dessa mistura de cristianismo com religiões pagãs trazidas para dentro das igrejas da Nigéria. A maioria dos pais assassinos se confessam cristãos nascidos de novo e guiados pelo Espírito Santo.

Tihomir: Você poderia nos contar alguns casos reais?

Leonardo: O caso que partiu meu coração, e do qual nunca me esquecerei, aconteceu em outubro de 2012. Michael, um garoto de 11 anos, foi trazido ao nosso centro com uma ferida enorme, quase fatal, em sua cabeça. Seu pai e seu tio queriam matá-lo. Nossa equipe o recolheu e registrou o caso na polícia. Seu pai, que se diz profeta, acusou Michael de bruxaria, em meio a um culto na igreja. Ele culpou a criança por seu casamento falido e seu desemprego. Nós queríamos manter o menino em nosso orfanato, já que sua lesão era grave e ele corria risco se continuasse perto do pai ou do tio. Nosso grupo trabalhou muito para ter a guarda do menino concedida pelo serviço social da região. Nesse meio-tempo, a polícia ordenou que ele continuasse na companhia do pai, que o deixava sem comer e não permitia que ficasse dentro de casa. Um dia, quando estava prestes a ser transferido para nosso orfanato, Michael desapareceu. Passamos mais de um mês procurando por ele em todas as vilas vizinhas, 30 km ao redor de onde ele vivia. O chefe da vila nos disse: “Eu conheço bem o pai e o tio do menino, e sei o quão violentos são. Acredito que eles o enterraram nas redondezas da sua casa”. Isso foi muito difícil para mim, porque o alimentei, o segurei em meu próprio colo; ele gostava muito de conversar comigo, era um menino doce e inteligente. Passamos o caso à polícia e fizemos a denúncia, mas nada foi feito. Nenhuma investigação. Ele se foi. Simplesmente apagado da história, sem nem mesmo uma investigação.

Tihomir: Eu só quero ter certeza de que compreendi o que você disse. Você acredita que o pai, ou o tio, ou os dois mataram o menino?
Leonardo: Sim. Todo mundo acredita nisso. Os vizinhos acreditam, o chefe da Vila acredita. Eu acredito também.

Tihomir: O que o governo da Nigéria tem feito em relação a casos como o de Michael? Eles são capazes de fazer alguma coisa?
Leonardo: Em 2008 o governo aprovou a Lei dos Direitos das Crianças. Rotular crianças como bruxas passou a ser considerado crime. Mas a lei nunca foi seriamente observada. Há um ano, um pai decapitou o próprio filho por acreditar que ele fosse “bruxo”. O menino andava pelas ruas passando fome, sem ninguém que o ajudasse; entrou em casa pelos fundos e pediu um pouco de sopa ao irmão; o pai ouviu sua voz, perseguiu-o e cortou sua cabeça com um machado. Esse homem trabalhava para o governo, como servidor público. Ele foi preso, mas solto no dia seguinte, por “falta de provas”. Em outro caso, o pai, um policial, com uma arma AK-47 na mão arrastou sua filha de oito anos, nua, pelas ruas. Ele a humilhou publicamente por acreditar que ela fosse bruxa. Esse também foi preso e solto dias depois, por “falta de provas”.

Tihomir: Eu ouvi dizer que essa menina agora vive sob a proteção de sua organização.
Leonardo: Nossa equipe conheceu essa menina no hospital local, quando ela se recuperava dos terríveis ferimentos causados por seu pai. Ela foi colocada em uma cama junto a uma de nossas crianças, que também recebia tratamento no local. Sua mãe ouviu sobre o que aconteceu e veio ao seu encontro. Essa mãe não tinha emprego, nem onde morar, então resolvemos contratá-la como uma de nossas servidoras. Hoje ela vive em segurança junto às duas filhas, em nosso orfanato.

Tihomir: O emblema da missão de vocês é “Way to the Nations é uma organização internacional dedicada à luta contra a ignorância, à erradicação da superstição, e ao resgate, suporte e reabilitação de crianças estigmatizadas como bruxas por líderes de igrejas e por seus pais”. Fale mais sobre isso.

Leonardo: Em 2004, o movimento Caminho Nações teve início, no Brasil. Foi criado pelo pastor Caio Fábio. Inspirados pela vontade de expor o Evangelho de forma prática, um grupo de amigos decidiu viver na prática o mandamento de Jesus: “Ame o seu próximo.” O Caminho Nações existe para servir os que necessitam. Fomos à Nigéria pela primeira vez em 2010. Desde então, desenvolvemos projetos também no Senegal. Estamos bem estabelecidos na Nigéria, com uma equipe de oito pessoas.

Tihomir: Na Nigéria nós vemos uma demonstração muito feia da chamada teologia da prosperidade levada ao extremo. Vemos os que se dizem pastores, profetas e evangelistas tornarem-se extremamente ricos às custas de seu seguidores. Parece que sua missão também vai contra essa mentalidade e trabalha na prevenção dessa prática vergonhosa.

Leonardo: Muito mais poderia ser feito, se pudéssemos transformar a mente desses pastores. Mas muitos não se ocupam em serem guias espirituais; eles estão ocupados em ficarem ricos. A riqueza de alguns pastores e evangelistas na Nigéria pode ser comparada à de alguns dos mais ricos pastores e evangelistas nos Estados Unidos. Isso é obsceno, quando se coloca no contexto de extrema pobreza de um país como a Nigéria. Frequentemente tenho perguntado aos pastores nigerianos: “Por que vocês não fazem algo que ajude a parar a superstição que leva a tantas mortes de crianças inocentes?”. Perguntei a um deles se ele acreditava que crianças nigerianas fossem bruxas, e ele disse: “Se Jesus ordenou que demônios fossem para porcos, por que demônios não poderiam também entrar em crianças?”. E ele é pastor de uma igreja grande; quando ele sobe ao púlpito para pregar, entra como se fosse uma estrela do rock. Infelizmente ainda não encontrei nenhuma igreja na Nigéria que tivesse algum ministério direcionado ao problema de crianças rotuladas como bruxas.

Tihomir: O seu website tem uma foto de um grupo de crianças resgatadas por sua Organização; todas limpas, vestidas adequadamente, a caminho da escola. Seu trabalho é sinal de esperança para a Nigéria.


Leonardo: Nesse momento temos aproximadamente 30 crianças em nosso centro. Queremos dar a elas suas vidas de volta. Queremos ajudá-las, dar-lhes amor e uma oportunidade. Há pouco tempo uma dessas crianças iniciou um curso de soldagem. Uma de nossas meninas está fazendo curso para ser cabeleireira. Há um ano, tivemos a excelente oportunidade de ter conosco o Dr. Tony Edet, que passou três meses tratando das crianças no orfanato. Sua esposa, Alicja,  também ajudou muito, cuidando das crianças e lhes ensinando a desenvolver bons hábitos. Sentimos que somos privilegiados por fazer parte dessa missão, que nos foi dada por nosso pastor no Brasil. É uma alegria saber que Deus está nos usando para fazer algo bom na Nigéria. Qualquer vida salva na Nigéria vale todo o sacrifício.
Entrevista original publicada no site The Huffington Post

Postagens Aleatórias