Na
Nigéria, lindas e inocentes crianças, às vezes de apenas dois anos
de idade, são torturadas, abandonadas e mortas por seus próprios
pais, parentes e membros da comunidade. Numa terra tomada pela
pobreza e analfabetismo, pastores autointitulados profetas vêm, no
decorrer dos anos, rotulando milhares de crianças como bruxas. O
diretor da organização brasileira Way to the Nations, Leonardo
Rocha dos Santos, dirige um orfanato na Nigéria que proporciona um
lugar seguro para as crianças resgatadas. Nessa entrevista ele nos
dá uma ilustração chocante dessa obscura realidade da Nigéria.
Tihomir:
Desde 2009, quando a mídia britânica noticiou extensamente a
tragédia na Nigéria, pouco foi noticiado ou mostrado pela imprensa
até recentemente. O problema diminuiu com o decorrer dos anos?
Leonardo:
Há quatro anos, desde que me envolvi com o ministério de resgate
das crianças falsamente rotuladas como bruxas, o número de crianças
torturadas e mortas não diminuiu. Já vi muitos casos, alguns de
extrema gravidade. Nosso trabalho só está presente em um dos
estados nigerianos, o estado com a população cristã. Essas
crianças rotuladas falsamente também são torturadas e mortas nos
Camarões e em Angola. A UNICEF também relata a situação como
crítica, no Congo. Algumas organizações internacionais relatam
milhares de casos de crianças estigmatizadas. Eu encontrei,
pessoalmente, cerca de 400 casos de tortura, abandono e morte de
crianças. Há apenas dois meses, numa certa noite recebemos uma
chamada telefônica angustiada, de alguém que tinha ouvido falar de
nossa organização, e conseguimos resgatar duas crianças que seriam
assassinadas ao mesmo tempo.
Tihomir:
Qual é o papel da Helen Ukpabio, fundadora da controversa “Liberty
Foundation” e seu ministério de exorcismo, em instigar a violência
contra as crianças na Nigéria?
Leonardo:
O problema cresceu muito desde 1999, quando Helen Ukpabio produziu um
filme de terror: “End of The Wicked” (Fim da Bruxaria). O filme,
assim como o “ministério” dela, de exorcismo, têm servido como
inspiração para a tortura e o assassinato de muitas crianças na
Nigéria e países vizinhos. Neste momento ela está visitando o
Reino Unido. Se eu fosse falar publicamente em igrejas no Reino Unido
ou nos Estados Unidos sobre como fabricar bombas, eu seria preso
imediatamente, porque bombas matam pessoas. No entanto, essa senhora,
cujo trabalho está tornando pais em assassinos de suas próprias
crianças, tem permissão para visitar o Reino Unido, onde ela
realiza exorcismo de crianças nesse momento.
Tihomir:
Dê-nos uma visão geral de como pais se tornam assassinos de suas
próprias crianças.
Leonardo:
O problema surge naquelas regiões onde o cristianismo se misturou a
religiões pagãs. Elas são solo fértil para superstições. A
maioria dos casos em que nós resgatamos crianças começa em
ambientes de igrejas com forte ministério de expulsão de espíritos,
evangelho da prosperidade e dominação – ambientes onde essas
formas de religiosidade passaram a ser o foco principal. Pastores e
profetas autointitulados, sedentos por dinheiro, ensinam os fiéis de
suas igrejas que muitos dos problemas que enfrentam, tais como
pobreza, desemprego, doenças e colheitas sem sucesso, são resultado
da presença de uma criança “bruxa” em suas famílias. Esses
pastores prometem expulsar das crianças tais espíritos de bruxaria;
em troca, eles exigem dos pais enormes quantidades de dinheiro, na
maioria das vezes impossíveis de serem pagas. Em seguida, os pais
supersticiosos passam a tentar descobrir qual, entre seus seis, sete,
às vezes oito filhos, é a criança bruxa. A tendência é escolher
a criança que apresenta algo diferente: algum tipo de limitação
física, uma doença, ou o mais inteligente e sapeca, ou o mais
genioso – conhecemos um menino que tinha epilepsia; seus pais
estavam convencidos de que ele estava possuído por um espírito de
bruxaria. As crianças são, então, forçadas, por meio de tortura,
a confessar que são bruxas. Elas passam a ser severamente
espancadas, expulsas de suas casas, jogadas nas ruas escuras ou em
florestas, mutiladas e até mortas. Tudo isso por conta dessa mistura
de cristianismo com religiões pagãs trazidas para dentro das
igrejas da Nigéria. A maioria dos pais assassinos se confessam
cristãos nascidos de novo e guiados pelo Espírito Santo.
Tihomir:
Você poderia nos contar alguns casos reais?
Leonardo:
O caso que partiu meu coração, e do qual nunca me esquecerei,
aconteceu em outubro de 2012. Michael, um garoto de 11 anos, foi
trazido ao nosso centro com uma ferida enorme, quase fatal, em sua
cabeça. Seu pai e seu tio queriam matá-lo. Nossa equipe o recolheu
e registrou o caso na polícia. Seu pai, que se diz profeta, acusou
Michael de bruxaria, em meio a um culto na igreja. Ele culpou a
criança por seu casamento falido e seu desemprego. Nós queríamos
manter o menino em nosso orfanato, já que sua lesão era grave e ele
corria risco se continuasse perto do pai ou do tio. Nosso grupo
trabalhou muito para ter a guarda do menino concedida pelo serviço
social da região. Nesse meio-tempo, a polícia ordenou que ele
continuasse na companhia do pai, que o deixava sem comer e não
permitia que ficasse dentro de casa. Um dia, quando estava prestes a
ser transferido para nosso orfanato, Michael desapareceu. Passamos
mais de um mês procurando por ele em todas as vilas vizinhas, 30 km
ao redor de onde ele vivia. O chefe da vila nos disse: “Eu conheço
bem o pai e o tio do menino, e sei o quão violentos são. Acredito
que eles o enterraram nas redondezas da sua casa”. Isso foi
muito difícil para mim, porque o alimentei, o segurei em meu próprio
colo; ele gostava muito de conversar comigo, era um menino doce e
inteligente. Passamos o caso à polícia e fizemos a denúncia, mas
nada foi feito. Nenhuma investigação. Ele se foi. Simplesmente
apagado da história, sem nem mesmo uma investigação.
Tihomir:
Eu só quero ter certeza de que compreendi o que você disse. Você
acredita que o pai, ou o tio, ou os dois mataram o menino?
Leonardo:
Sim. Todo mundo acredita nisso. Os vizinhos acreditam, o chefe da
Vila acredita. Eu acredito também.
Tihomir:
O que o governo da Nigéria tem feito em relação a casos como o de
Michael? Eles são capazes de fazer alguma coisa?
Leonardo:
Em 2008 o governo aprovou a Lei dos Direitos das Crianças. Rotular
crianças como bruxas passou a ser considerado crime. Mas a lei nunca
foi seriamente observada. Há um ano, um pai decapitou o próprio
filho por acreditar que ele fosse “bruxo”. O menino andava pelas
ruas passando fome, sem ninguém que o ajudasse; entrou em casa pelos
fundos e pediu um pouco de sopa ao irmão; o pai ouviu sua voz,
perseguiu-o e cortou sua cabeça com um machado. Esse homem
trabalhava para o governo, como servidor público. Ele foi preso, mas
solto no dia seguinte, por “falta de provas”. Em outro caso, o
pai, um policial, com uma arma AK-47 na mão arrastou sua filha de
oito anos, nua, pelas ruas. Ele a humilhou publicamente por acreditar
que ela fosse bruxa. Esse também foi preso e solto dias depois, por
“falta de provas”.
Tihomir:
Eu ouvi dizer que essa menina agora vive sob a proteção de sua
organização.
Leonardo:
Nossa equipe conheceu essa menina no hospital local, quando ela se
recuperava dos terríveis ferimentos causados por seu pai. Ela foi
colocada em uma cama junto a uma de nossas crianças, que também
recebia tratamento no local. Sua mãe ouviu sobre o que aconteceu e
veio ao seu encontro. Essa mãe não tinha emprego, nem onde morar,
então resolvemos contratá-la como uma de nossas servidoras. Hoje
ela vive em segurança junto às duas filhas, em nosso orfanato.
Tihomir:
O emblema da missão de vocês é “Way to the Nations é uma
organização internacional dedicada à luta contra a ignorância, à
erradicação da superstição, e ao resgate, suporte e reabilitação
de crianças estigmatizadas como bruxas por líderes de igrejas e por
seus pais”. Fale mais sobre isso.
Leonardo:
Em 2004, o movimento Caminho Nações teve início, no Brasil. Foi
criado pelo pastor Caio Fábio. Inspirados pela vontade de expor o
Evangelho de forma prática, um grupo de amigos decidiu viver na
prática o mandamento de Jesus: “Ame o seu próximo.” O Caminho
Nações existe para servir os que necessitam. Fomos à Nigéria pela
primeira vez em 2010. Desde então, desenvolvemos projetos também no
Senegal. Estamos bem estabelecidos na Nigéria, com uma equipe de
oito pessoas.
Tihomir:
Na Nigéria nós vemos uma demonstração muito feia da chamada
teologia da prosperidade levada ao extremo. Vemos os que se dizem
pastores, profetas e evangelistas tornarem-se extremamente ricos às
custas de seu seguidores. Parece que sua missão também vai contra
essa mentalidade e trabalha na prevenção dessa prática vergonhosa.
Leonardo:
Muito mais poderia ser feito, se pudéssemos transformar a mente
desses pastores. Mas muitos não se ocupam em serem guias
espirituais; eles estão ocupados em ficarem ricos. A riqueza de
alguns pastores e evangelistas na Nigéria pode ser comparada à de
alguns dos mais ricos pastores e evangelistas nos Estados Unidos.
Isso é obsceno, quando se coloca no contexto de extrema pobreza de
um país como a Nigéria. Frequentemente tenho perguntado aos
pastores nigerianos: “Por que vocês não fazem algo que ajude a
parar a superstição que leva a tantas mortes de crianças
inocentes?”. Perguntei a um deles se ele acreditava que crianças
nigerianas fossem bruxas, e ele disse: “Se Jesus ordenou que
demônios fossem para porcos, por que demônios não poderiam também
entrar em crianças?”. E ele é pastor de uma igreja grande; quando
ele sobe ao púlpito para pregar, entra como se fosse uma estrela do
rock. Infelizmente ainda não encontrei nenhuma igreja na Nigéria
que tivesse algum ministério direcionado ao problema de crianças
rotuladas como bruxas.
Tihomir:
O seu website tem uma foto de um grupo de crianças resgatadas por
sua Organização; todas limpas, vestidas adequadamente, a caminho da
escola. Seu trabalho é sinal de esperança para a Nigéria.
Leonardo:
Nesse momento temos aproximadamente 30 crianças em nosso centro.
Queremos dar a elas suas vidas de volta. Queremos ajudá-las,
dar-lhes amor e uma oportunidade. Há pouco tempo uma dessas crianças
iniciou um curso de soldagem. Uma de nossas meninas está fazendo
curso para ser cabeleireira. Há um ano, tivemos a excelente
oportunidade de ter conosco o Dr. Tony Edet, que passou três meses
tratando das crianças no orfanato. Sua esposa, Alicja, também
ajudou muito, cuidando das crianças e lhes ensinando a desenvolver
bons hábitos. Sentimos que somos privilegiados por fazer parte dessa
missão, que nos foi dada por nosso pastor no Brasil. É uma alegria
saber que Deus está nos usando para fazer algo bom na Nigéria.
Qualquer vida salva na Nigéria vale todo o sacrifício.
Entrevista original publicada no site The Huffington Post
Entrevista original publicada no site The Huffington Post